domingo, 26 de dezembro de 2010

Presentes e lembranças

     Estudava no Grupo Escolar Joaquim Assunção (entra burro e sai ladrão, como dizíamos de sacanagem) e morava em Pelotas. Era 1969. Meu saudoso pai, preso político, estava em liberdade, mas havia sido dado como morto. Não existia oficialmente. E não conseguia emprego formal graças a uma lista negra distribuída pelo governo para evitar a contratação dos subversivos – nome dado aos comunistas naquela época. Eu era um guri de nove anos que sonhava em ser jogador de futebol. – Primeiro os estudos – alertava o pai, sempre lendo algo ou fazendo palavras cruzadas. – Ele é inteligente, vai conseguir – ajudava a mãe. Era chegado dela. O pai trabalhava de taxista toda madrugada. Dormi na cama da mãe até meu irmão nascer. Supria em parte a falta do pai.
     Lembro que a mãe se arrumava toda pra ir ao banco receber a pensão de viúva. Eu ia a tiracolo. Depois que pegava o dinheiro sempre me levava pra comer um lanche. Uma vez, grávida de meu irmão caçula, ao ser chamada pra receber a tal pensão, mostrou a barriga pro caixa do banco. – Aqui! A viúva do marido vivo – disse em voz alta. Era sua forma de protestar contra o regime. Com humor. O pai era inflexível. Tinha lá suas razões. Em 1980, com a anistia, ele teve direito a receber o equivalente a 16 anos de salários atrasados como sargento da PM, cargo que ocupava quando iniciou a Revolução de 64. Correu pro cartório e passou uma procuração pra mãe. – Não vou sujar minhas mãos com esse dinheiro de sangue – afirmou, convicto.
     Nossa primeira televisão foi comprada em 24 vezes. Pra ver a chegada do homem na lua. Assistimos desconfiados. A mãe morreu não acreditando. Para ela, os foguetes lançados pra lua serviram apenas pra alterar o clima no planeta. – Não tem mais inverno, verão, primavera e outono – reclamava. Minha primeira bicicleta também foi comprada a perder de vista. Era uma Monareta 1970. Lilás, banco com duas molas. Nunca imaginei que ganharia. Estava em casa quando ouvi o barulho de um carro. Olhei e vi uma Kombi com duas geladeiras e uma Monareta na carroceria. O entregador desceu a bicicleta e se dirigiu pro nosso portão. – Teu presente de Natal – gritou a mãe. Andei na Monareta madrugada adentro.
     Esse flash-back me ocorreu depois de comprar a primeira bicicleta pra minha neta de quatro anos. Uma Mormaii, rosa, com cestinha e capacete. Fiquei radiante como em 70. E agradeci por poder realizar o sonho dela bem mais cedo que o meu quando criança. Relembrar aqueles tempos é uma necessidade. Faz bem pra alma. Senti até o cheiro da torrada do Forno (a lanchonete que íamos depois da viúva do marido vivo pegar a pensão). Hoje,  reconheço o esforço de meus pais ao comprar aquela bicicleta. Mudou minha vida. Depois dela nada era tão longe. Agora, como vovô, minha tarefa é outra: ensinar a netinha a andar sem as rodinhas auxiliares. O sorriso no rosto dela compensa tudo. E consigo perceber o verdadeiro sentido do Natal. 
           

Nenhum comentário:

Postar um comentário