quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Narração inédita

Entrei no rádio aos 13 anos. E tive o privilégio de trabalhar com alguns pioneiros da radiodifusão de minha cidade. Um deles, o “Turco Musa”, foi o primeiro narrador de corridas de cavalo. Na época em que decidiu transmitir a corrida achavam que ele, além de desbocado, estava louco.
O “hipódromo” era longe da cidade, na verdade uma estrada rural. O povo se espalhava em sua extensão. O equipamento da rádio foi instalado numa arquibancada improvisada próximo da reta de chegada. O Musa no meio do povo, todo nervoso, balançando o corpo como faz até hoje. Dizem as más línguas que o Turco só transmitiu realmente a largada, porque de onde estava só enxergava a poeira que os cavalos levantavam. E ele foi enrolando, enrolando, dizendo que tal cavalo estava na frente seguido por outro, que a corrida estava muito equilibrada etc e tal. Confiava em sua posição privilegiada para narrar com fidelidade pelo menos a chegada.
Cavalos e cavaleiros fizeram a curva para entrar na reta final. E o Musa na arquibancada, com seu microfonão.
- E aí vem eles! Folíparo e Cirineta disputando corpo a corpo, cabeça a cabeça... Uma chegada emocionante. Tudo pode acontecer... – berrava o Turco no meio do povo que, àquela altura, também estava emocionado.
Faltando pouco mais de dez metros a corrida ainda estava indefinida. O Musa firmou bem a visão para ver bem quem ultrapassava a reta de chegada.
- Sensacional a primeira corrida de cavalos transmitida por uma rádio do interior gaúcho – repetia o Turco.
Estufou o peito para declarar o vencedor da carreira quando um rapazote levantou na arquibancada e prejudicou sua visão. Os ouvintes escutaram o Turco falar:
- Incrível! Folíparo e Cirineta cabeça a cabeça. Vamos ver quem chega em primeiro. Sai da frente guri filho da puta!!!

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Mais ou menos

Sempre primei pela autenticidade. E já perdi muito por não usar meios-termos. Lembro que minha mãe dizia que Papai do céu não gostava das pessoas mornas. E segui a orientação da Dona Dote à risca. Creio até que exagerei, principalmente na vida profissional. Nunca gostei de fazer de conta que trabalhava, de aceitar governos medíocres, de me consolar com as coisas mais ou menos. Contudo, sempre soube que não era o único a não aceitar as coisas pela metade. A vida ensinou-me que pessoas de grande significância, alguns até considerados como meus ídolos, também compartilhavam dessa opinião.
Chico Xavier, o verdadeiro santo brasileiro, igualmente não se conformava com esses meios-termos. Certa feita, disse com suas sábias palavras, que "a gente pode morar numa casa mais ou menos; numa rua mais ou menos, numa cidade mais ou menos, e até ter um governo mais ou menos”. Mas o que me deixou mais feliz ainda foi saber que o grande médium espírita, assim como eu – um humilde escriba – não concebia que a gente amasse mais ou menos, sonhasse mais ou menos, fosse amigo mais ou menos, namorasse mais ou menos e, principalmente, acreditasse mais ou menos. – Senão – dizia Chico Xavier -, a gente corre o risco de se tornar uma pessoa mais ou menos...

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

O recado do síndico

A velha canção diz que na vida a gente tem que entender que uns nascem pra sofrer enquanto outros riem. E que, para aguentar essa realidade, só mesmo tendo um sonho, azul da cor do mar. O senso de justiça, peculiar a todo jornalista, ainda existe, porém deve estar meio que adormecido. Sem saudosismos, de uns anos para cá foram raras as publicações independentes, que nasceram para tentar mudar as coisas. O capitalismo engoliu o sonho de muita gente. E muita gente boa virou chapa branca. Até o Lula, hoje, é chapa branca...
O inconformismo deu lugar à acomodação. Harold Robbins disse que os sonhos morrem primeiro. E o célebre escritor estava certo. Muita gente boa, parece, deixou de sonhar de uns tempos para cá. Assim como o Tim (o Maia, não o Lopes, que certamente morreu com a chama do inconformismo latente em sua alma). Tim Maia, o Síndico mais famoso do Brasil, há muito já entendera que o mundo é desigual. E pregou sonhos azuis para conviver com as desigualdades.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Entre breques e solavancos

Olhando o ônibus lotado, fiquei a imaginar como seria o início de um romance em tais condições.
- Desculpe – diz o rapaz timidamente depois de pisar no pé da jovem ao seu lado. – Não consegui evitar. O motorista freiou de repente...
- Tudo bem – responde a bela morena olhando para um homem suado e com o braço erguido. – Tem coisa pior que isso...
- Você pega sempre essa linha? – anima-se o jovem.
- Sempre essa hora. E você?
- Também.
Silêncio. O sobe e desce continua.
Pouco depois os dois se olham pelos vidros do coletivo, que atuam como espelhos. Disfarçadamente ele a vê puxar a campainha. Decide saltar também. Quando o ônibus pára ele já está numa das portas de saída, com o pé na rua. Dá uma última olhadinha. Não vê a garota junto à outra porta. Entende na hora que ela apenas acionou a campainha para ajudar alguém. Confere. Lá está ela, espremida entre dois marmanjos, segurando uma sacola.
Ela não o tinha perdido de vista. Já trocara três vezes de lugar para continuar olhando em sua direção. Quando puxou a campainha para aquela senhora com um bebê ao colo viu que ele se aprontou para descer também. Chegou a tremer. Achava que ele pararia mais adiante, mais perto da vila onde ela morava. Surpresa. Ele só ficou na porta, não desceu. Resolve dar mais uma olhadinha. Seus olhos se cruzam. Ela sorri. Ele retribui. Sente um friozinho no estômago.
- Com licença...
É o jovem novamente. Reconheceu a sua voz sem que precisasse olhar diretamente para ele. Reúne coragem não sabe de onde e o encara. Nota que ele também está nervoso.
- "Agora eu encosto" – decide-se o rapaz, imaginando mil maneiras de dizer alguma coisa sem que nada concreto lhe viesse à mente. Pensa em lhe passar o telefone da firma onde trabalha, mas desiste. Sabe que não tem tempo a perder. Faltam apenas três paradas para chegar em casa. Arrisca.
- Você não é a namorada do Júlio (primeiro nome que lhe vem à cabeça)?
- Não. Por quê?
- Parecida...
- Eu nem tenho namorado – emenda ela, convencida de que se não ajudasse, a conversa iria morrer novamente.
- Não tem mesmo? – alegra-se o já não tão tímido rapaz.
- Verdade...
O motorista freia novamente. E os dois agradecem mentalmente por ficarem mais juntinhos...