sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Menage caboclo

Resolvi dar um tempo e viver em contato com a natureza. Eu, minha mulher e as filhas escolhemos para morar uma chácara, distante oito quilômetros da cidade. O lugar era lindo, cheio de árvores frutíferas e tinha até um pequeno lago. Um sonho. O verdadeiro repouso de um guerreiro que trabalhava arduamente em três empregos distintos.
- É um desperdício a gente morar num lugar tão amplo e não criar nem um bicho. Quem sabe mais algumas galinhas? – disse, olhando para os quatro hectares à minha disposição, ocupados apenas por dois galos e três galinhas já velhas.
- Não quer também uma vaquinha pra gente tirar leite de manhã bem cedo? – ironizou minha mulher. - Não inventa que depois sobra é pra nós – reclamou junto com as duas gurias.
- Mas será possível que vocês não entendem...
- O senhor é que não pensa no que fala. Trabalha fora o dia todo... – argumentou a filha mais velha.
- Gente, o que é isso? Estou estranhando vocês... Só achei uma pena a gente morar num lugar tão amplo e não aproveitar...
- Já não bastam os oito cachorros que a gente tem? – perguntou a filha menor.
- Mas umas galinhas, pra gente ter ovos caseiros, não teria por que não criar... – aleguei.
- Desde que os cachorros não comam todas...
Tudo certo. Combinamos que eu iria tratar de comprar as tais galinhas. Na verdade o que eu queria mesmo era dar uma força para os dois galos que já estavam na chácara e se dividiam com as três galinhas caipiras. “Pobres bichos, dizem que cada galo dá conta de dez galinhas. Imaginem esses dois infelizes. Por isso é que andam cabisbaixos...”, pensei, com a velha cumplicidade machista.
No primeiro domingo na nova chácara espalhei pela redondeza que queria comprar umas galinhas botadeiras. Na hora me indicaram o seu Raul, criador de galinhas chamadas de ‘peito duplo’. Vendeu-me trinta galinhazinhas e garantiu que em 45 dias elas já estariam prontas para serem abatidas. Concordei, mas nem dei bola. Afinal o que eu queria mesmo era deixar os dois galos numa boa...
Num curto espaço de tempo as galinhas cresceram. E a vida de meus velhos galos mudou radicalmente. Andavam de peito estufado, cantavam por qualquer coisa. À sua maneira eles dividiram as galinhas, mas não dispensaram as “esposas” mais velhas. Fiquei satisfeito como um pai que consegue comprar aquele presente tão desejado por um filho...

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Tico duro

Aprendi a gostar do rádio com minha mãe, que adorava cantar e teve oportunidade de acompanhar várias rádio-novelas. Ficava encantado com as histórias que ela contava sobre esse fantástico e ágil veículo de comunicação. Uma das histórias mais pitorescas envolvendo radialistas teria ocorrido na minha terra natal, na fronteira gaúcha com o Uruguai. “No tempo do rádio a manivela”, como brincava mamãe.
Um narrador esportivo muito conhecido foi protagonista de uma situação hilária. Tarde de domingo, estádio lotado. Iriam se enfrentar os maiores rivais da cidade. O clássico Baguá (Bagé e Guarani), que movimenta multidões até hoje. Nos anos 50, então, quase toda a cidade ia ao estádio.
A esperança de gols do Guarani era o centroavante Tico, que andara jogando até no México. Um “cracaço” como dizia toda hora o narrador da única rádio da época. Minha mãe acompanhou o clássico pelo rádio e disse que o jogo foi tenso desde o início. Lá pelos 30 minutos, o Tico recebeu um passe e entrou com bola e tudo na rede adversária. A torcida explodiu de alegria, mas o árbitro anulou o gol.
- Mas o que que ele deu, Fulano? – perguntou o narrador ao repórter de campo.
- Impedimento, Beltrano. Ele anulou o gol porque o Tico estava na frente do zagueiro...
Nesse momento já se armara o maior bafafá. Sentindo-se prejudicado, o time do Guarani correra pra cima do juiz. O mais exaltado de todos era o Tico. O centroavante reclamou tão acintosamente que recebeu o cartão vermelho.
O narrador, excitado com a confusão, transmitia aos ouvintes os detalhes.
- Agora é que a coisa complicou... O juiz botou o Tico pra fora, mas o Tico endureceu e não quer sair... O juiz tenta, tenta, mas não consegue botar o Tico pra fora...
- Ele chamou a Polícia, Beltrano – informou o repórter.
E o radialista continuava descrevendo o que ocorria no campo, com a sua narração dúbia.
- É um drama, senhoras e senhores. O juiz agora chamou a Polícia Militar e mandou os policiais botarem o Tico pra fora...
Mamãe disse-me que não soube o resultado daquele clássico porque meu avô, ouvindo aquilo tudo, correu com ela pro quarto. Afinal, futebol, naquela época, era mesmo coisa pra homem. Pra quem tinha tico...

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O fio de cabelo

O relacionamento ia bem até a descoberta daquele fio de cabelo.
- E esse fio aqui? – interroga a mulher.
- Fio? Que fio?
- Este aqui, ó! – berra ela, com o fio longo e loiro entre o indicador e o polegar.
- E eu que vou saber. Sei lá de fio... – retruca ele, impaciente.
- Pelo menos da dona do fio você deve lembrar... – alfineta a esposa.
- Mas que dona, que fio. Pára com isso, mulher!
Pronto. Armou-se a maior confusão. E o pior é que ele nem sonhava quem seria a dona daquele (maldito) fio de cabelo. “Bem que ela poderia existir, já que estou me incomodando tanto”, pensou, cabisbaixo.
- Isso tá me cheirando a sacanagem. E das grandes – voltou ela a insistir.
- Mas que bobagem! Você sabe que eu nem gosto de loiras...
- Não gosta, é? E a Silvana?
- Quem?!
- Você ouviu muito bem. Silvana, Silvana – repetiu a esposa, num pé só.
- Não acredito que você ainda lembra da Silvana. A gente ainda era namorado...
- Não tenta me enrolar que até hoje eu não engoli aquela história!
- Mas faz mais de vinte anos...
- Pra mim é como se tivesse sido ontem. Não esqueço e nunca vou esquecer...
O marido sentiu que era melhor calar. Não sabia nada daquele fio de cabelo, nem tivera nada com a Silvana. “Bem que eu tentei, mas ela...”.
Os pensamentos foram interrompidos pela voz da mulher que, teimosamente, insistia em saber a procedência do tal fio loiro, agora já grudado no espelho com esparadrapo para não se perder, como se fosse a prova do crime.
- Dessa vez você não escapa! Te peguei com a boca na botija... – dizia ela em voz alta.
- Mas que inferno! Já te disse que não sei nada desse fio de cabelo. Talvez seja de uma das meninas...
- Você bem sabe que suas filhas são morenas!
- Não sei mais o que dizer, mulher!
- Então fica quieto. Quem cala consente...

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Linha direta

- Alô, é do Presídio?
- É...
- Eu quero falar com o Beira-Mar...
- Quem qué falá cum ele?
- É o Marcelo Resende...
- Da Globo?
- Ai, ai... Não, meu amigo. Do Repórter Cidadão...
- O Beira-Mar ta notra ligação...
- Será que ele vai demorar?
- Sei não... Acho que vai. Ele ta falando em espanhol...
- Ligação internacional, hein? Era só o que me faltava... Diz pra ele que nós estamos ao vivo...
- Eu não sô loco di interrompê u hômi... O senhor não qué falá cum otra pessoa enquanto isso? Serve o maníaco do parque?
- Ele está por aí?
- Não, mas ele tem celular lá no isolamento...
- Obrigado, seu guarda. Eu ligo depois...
- Seu Marcelo, posso perguntá mais uma coisa?
- Claro, seu guarda. Fique à vontade...
- Tudo que a gente conversando as pessoa tão ouvindo?
- Lógico. Eu já disse que nós estamos ao vivo...
- Posso mandá um alô?
- Pode, vai lá. Fazer o quê?...
- Eu queria pedí pra não ligarem mais aqui pra portaria pedindo pra chamá o Beira-Mar. Você sabe, né? Às vez fica chato...
- Entendo... Você tem medo de perder o seu emprego...
- Não. É que às vez o hômi ta ocupado e pode ficá brabo di sê interrompidu...
- Vamos aos nossos comerciais, por favor...